Era Paris,
inverno de 1996, quando eu ainda tinha cabelos encaracolados. Chovia e eu
resolvi passear à pé pela cidade. A cidade esfervecia de atrações culturais e
por todo lado podia ver cartazes de espetáculos em turnês. Parei para descansar
na escadaria de uma simpática igrejinha. Quando o relógio soou doze badaladas –
era meia noite – apareceu na minha frente um carro antigo, com mulheres
vestidas com roupas com franjas, cintura baixa e cabelos curtos e homens com
fraques e cigarrilhas. Me chamaram para entrar no carro e eu, curiosa, quis
saber porque estavam vestidos assim. Entrei no carro e aceitei a taça de
champagne que me ofereceram sorridentes. Falavam em francês e tive um pouco de
dificuldade para entender – talvez tenham se apresentado com nomes de
escritores franceses clássicos. Não entendi direito e ri divertida. Olhamos
pela janela e logo na nossa frente estacionava uma caravana de ciganos. Desci
do carro quando percebi que estavam montando um pequeno circo de lona vermelho
vibrante bem ali na Place Vendôme. Ao redor do circo muitas crianças com lenços
coloridos nas cabeças e meninas jovens com saias longas estampadas e camisetas
justas, dançando debochadas da chuva que caía. Assisti a essa cena excêntrica e
depois percorri o acampamento bagunçado e até um pouco sujo para saber a que
horas se apresentariam. Me recebeu um senhor simpático, barrigudo e com um
sorriso reluzente (nem tudo que reluz é ouro mas nesse caso era – seus dentes
amarelados eram intercalados com dentes cobertos de ouro). Era o dono do circo.
Ao lado, sua mulher, com cabelos emaranhados, não tão sorridente, me encarava
com desdém. O senhor, que falava alto e em versos, ao saber que eu também era
artista de circo, ofereceu-me o bilhete de entrada com muita alegria. Enquanto
esperava a hora do show olhava a lona, tão pequena, e ficava imaginando como
podia caber um espetáculo ali. De vez em quando, de relance, flagrava uma
criança a me olhar com olhos de gato – olhos velhos de quem tem muitas vidas
dentro de uma fração de segundo do olhar. Me arrepiava. O cheiro era
inesquecível, cheiro forte de bicho. Toda vez que entro em um circo fico
tentando imaginar que bicho tem pelo cheiro. De cara identifiquei o cheiro de
cabra. O público foi chegando e os artistas recebiam-nos contentes até
sentarem-se na platéia. Depois de todos acomodados, apareciam por detrás das
cortinas com figurinos com cores fortes e muitos instrumentos. As mulheres
sentavam-se uma ao lado da outra com seus bebês no colo e, junto com os
músicos, compunham o cenário. Os homens transitavam entre funções do próprio
circo, de um lado para o outro, e vez ou outra um entrava para apresentar
alguma habilidade. As mulheres tinham cabelos muito longos, a pele morena e
todos com fios grossos e negros. Nem todos os homens tinham dentes mas todos
sorriam o tempo inteiro. As crianças, olhos de gato e cabelos bagunçados. Todos
ficavam no palco, alguns com instrumentos: acordeon, pratos, violão, flautas...
a ciganona dona do circo entrou cantando uma música alegre com uma voz imponente,
alegre e dura de cigana – a música me arrepiava, me senti como num transe.
Todos batiam palmas e dava gritos animados juntos. No intervalo da
apresentação, o público sentava em mesas e cadeiras dispostas no palco para
comer um sopão preparado pelas mulheres. Alguns números eram realizados por
crianças e quando entravam seus pais ficavam perto, amparando. As mulheres,
lindas, de cabelos longos e negros e rosto de muitas vidas, faziam seus números
com os cabelos soltos, figurinos luxuosos ou com bem pouca roupa, à vontade no
picadeiro como se ali almoçassem todos os dias. Os outros, sentados em volta,
torciam, cantavam, animavam com gritos e palmas... Um lindo espetáculo com ares
felinos e ventos antigos. Saindo dali, continuei meu passeio a pé, menos incomodada
com a chuva, com um sorriso debochado de canto de boca e cabelos soltos e
encaracolados.
Esse é o espaço para que possamos registrar nossas impressões pessoais sobre o processo de criação do espetáculo. Primeiro o tema depois o blog ou primeiro o blog para registrar o surgimento de tema? Optamos pela segunda opção, pensando na riqueza dessa fase de inspiração e de busca de referências. Claro, nosso objetivo artístico principal não é o blog mas unir a comunicação e a criação artística foi bem tentador.
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Vi as cenas aqui descritas como se lá estivesse...bom viver vivências através das palavras.
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