terça-feira, 20 de março de 2012

Cadê o gato?


Nos damos as mãos. Encontramos um eixo em comum. Ele está em cima de mim. Eu desço meu tronco com cuidado, ela não pode cair. Caminhamos. Ele avança sobre os meus ombros. Estamos as duas em pé sobre dois pés. Nos concentramos e avançamos mais um pouco. Imagino uma linha na altura do meu olhar e viro primeiro pra direita, depois para a esquerda. Ele está agora em cima do peito do meu pé, apoiado sobre as patas de trás, olhando pra vocês.



Foto de João Saenger

quinta-feira, 15 de março de 2012

Não isso não é um blog e eu não estou postando um texto. Isso é um espetáculo e eu to sentada em uma cadeira giratoria olhando pra você. O espetáculo não se chama diário de bordo, não fala de ausência nem de gazelas. Tem um gato e ele tá bem aqui em cima de mim. Você viu o Gato? E os olhos de gato da trapezista você viu?

domingo, 29 de janeiro de 2012

Cirurgia Estética



Nesse caso, falamos de apropriação. Apropriação de um corpo estranho. Quase como um implante. Implante de repertório. No início ficamos em observação: pode  haver uma reação negativa ou uma rejeição. Depois pode ficar meio artificial – um corpo descolado do meu, uma forma anexa, adjacente. Se tudo der certo, posso chegar a incorporar e me apropriar desse corpo estranho, até que ele vire eu. Passo a me reconhecer nele, não estranhar. Sinto-o familiar. Um processo de transformação corporal.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

lembranças de um circo cigano madrugada em Paris


Era Paris, inverno de 1996, quando eu ainda tinha cabelos encaracolados. Chovia e eu resolvi passear à pé pela cidade. A cidade esfervecia de atrações culturais e por todo lado podia ver cartazes de espetáculos em turnês. Parei para descansar na escadaria de uma simpática igrejinha. Quando o relógio soou doze badaladas – era meia noite – apareceu na minha frente um carro antigo, com mulheres vestidas com roupas com franjas, cintura baixa e cabelos curtos e homens com fraques e cigarrilhas. Me chamaram para entrar no carro e eu, curiosa, quis saber porque estavam vestidos assim. Entrei no carro e aceitei a taça de champagne que me ofereceram sorridentes. Falavam em francês e tive um pouco de dificuldade para entender – talvez tenham se apresentado com nomes de escritores franceses clássicos. Não entendi direito e ri divertida. Olhamos pela janela e logo na nossa frente estacionava uma caravana de ciganos. Desci do carro quando percebi que estavam montando um pequeno circo de lona vermelho vibrante bem ali na Place Vendôme. Ao redor do circo muitas crianças com lenços coloridos nas cabeças e meninas jovens com saias longas estampadas e camisetas justas, dançando debochadas da chuva que caía. Assisti a essa cena excêntrica e depois percorri o acampamento bagunçado e até um pouco sujo para saber a que horas se apresentariam. Me recebeu um senhor simpático, barrigudo e com um sorriso reluzente (nem tudo que reluz é ouro mas nesse caso era – seus dentes amarelados eram intercalados com dentes cobertos de ouro). Era o dono do circo. Ao lado, sua mulher, com cabelos emaranhados, não tão sorridente, me encarava com desdém. O senhor, que falava alto e em versos, ao saber que eu também era artista de circo, ofereceu-me o bilhete de entrada com muita alegria. Enquanto esperava a hora do show olhava a lona, tão pequena, e ficava imaginando como podia caber um espetáculo ali. De vez em quando, de relance, flagrava uma criança a me olhar com olhos de gato – olhos velhos de quem tem muitas vidas dentro de uma fração de segundo do olhar. Me arrepiava. O cheiro era inesquecível, cheiro forte de bicho. Toda vez que entro em um circo fico tentando imaginar que bicho tem pelo cheiro. De cara identifiquei o cheiro de cabra. O público foi chegando e os artistas recebiam-nos contentes até sentarem-se na platéia. Depois de todos acomodados, apareciam por detrás das cortinas com figurinos com cores fortes e muitos instrumentos. As mulheres sentavam-se uma ao lado da outra com seus bebês no colo e, junto com os músicos, compunham o cenário. Os homens transitavam entre funções do próprio circo, de um lado para o outro, e vez ou outra um entrava para apresentar alguma habilidade. As mulheres tinham cabelos muito longos, a pele morena e todos com fios grossos e negros. Nem todos os homens tinham dentes mas todos sorriam o tempo inteiro. As crianças, olhos de gato e cabelos bagunçados. Todos ficavam no palco, alguns com instrumentos: acordeon, pratos, violão, flautas... a ciganona dona do circo entrou cantando uma música alegre com uma voz imponente, alegre e dura de cigana – a música me arrepiava, me senti como num transe. Todos batiam palmas e dava gritos animados juntos. No intervalo da apresentação, o público sentava em mesas e cadeiras dispostas no palco para comer um sopão preparado pelas mulheres. Alguns números eram realizados por crianças e quando entravam seus pais ficavam perto, amparando. As mulheres, lindas, de cabelos longos e negros e rosto de muitas vidas, faziam seus números com os cabelos soltos, figurinos luxuosos ou com bem pouca roupa, à vontade no picadeiro como se ali almoçassem todos os dias. Os outros, sentados em volta, torciam, cantavam, animavam com gritos e palmas... Um lindo espetáculo com ares felinos e ventos antigos. Saindo dali, continuei meu passeio a pé, menos incomodada com a chuva, com um sorriso debochado de canto de boca e cabelos soltos e encaracolados.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Sobre a sincronia

Sincronizar tempo, desejo, idéias, movimentos, opiniões... manter o ritmo, tempo, encadeamento. Propostas, demandas, e pluft! a realidade. A realidade é ruptura, por isso a sincronia é tão mágica, ela nos coloca em um momento suspenso no tempo - irreal. Ela é o tempo, puro. É do mundo das coincidências, das fatalidades, das improbabilidades. A sincronia, pensada sob o ponto de vista da linguística, é um recorte no tempo. Um recorte no tempo, no campo das imagens, é uma foto. Buscar a sincronia de movimentos é recortar tudo em pequeninos pedaços de ângulos, intenções, direções e intensidades - quanto menor os pedaços, mais sincronia. O risco é cortar demais e perder algum por aí...

domingo, 27 de novembro de 2011

é difícil se ver no espelho

escolhi um número de trapézio. lindo, leve, romântico... a trapezista dança com tanta emoção, com tanto sentimento, sentimento que move...

sei dizer porque eu escolhi ele mas não sei dizer o que tem de mim nele. se me toca é eu?

a trapezista, tão distante...

o vento... o vento leva pra tão longe, bem distante

a delicadeza não é minha, a emoção é. travei. não quero falar do que me toca - o que me toca toca fundo e não sei se tem delicadeza lá, ninguém quer ver isso, não sei se quero me ver.

não lembro em que momento da vida ele me tocou, também sou romântica. romântica nada, uma boba. o sentimento da trapezista é assim meio jogado também, igual o meu. ela dança com as pernas, os joelhos, com os pés...

o vento leva pra tão longe, bem distante.  aqui tão perto, muito perto estão os seus pés. tenho dedos, tenho plantas, tenho planos. minha vida, aonde foi minha memória, não te peço nem um risco, nem um giz... só seu amor...

falar de outro é falar de mim. o que me toca é meu. me vestir trapezista.. eu tenho vento? é tão distante... é tão perto... o outro no espelho não é eu, é eu, não é meu. posso dançar com os joelhos, com os pés? tenho dedos.. tenho plantas...

nas ruas passeiam os pés, os pés que pisoteiam o asfalto não são meus, não são meus nem são seus, os seus andam com os meus, curvas, retas e até ladeiras... o nosso andar vai junto porque os meus pés são os seus e os seus estão nos meus... pés

qual o limite entre eu e o outro?